Além da Chácara do Jockey, no bairro do Ferreira, a Prefeitura pode desapropriar a sede da entidade na Marginal e a comunidade ganhar um grande parque esportivo e de lazer, também em decorrência da dívida de IPTU que o clube tem com a Prefeitura, avaliada em ao menos R$ 150 milhões, além de pendências fiscais como multas por realização de eventos sem alvará e publicidade irregular. A proposta tem o aval do prefeito Gilberto Kassab, e um decreto de utilidade pública que atesta o interesse da Prefeitura no terreno, já foi publicado. Agora, o que vem à tona, é a desapropriação da área do Jockey na Marginal Pinheiros/Cidade Jardim, assunto que já foi destaque nos últimos anos e que poderá ser realidade para a comunidade, principalmente pela escassez de áreas verdes na Capital. Para falar sobre a especulação imobiliária da futura “Jockeylândia”, o bacharel em Direito pela USP, Roberto Ferrari de Ulhôa Cintra:
“Quatro gerações de minha família frequentaram o Jockey Club de São Paulo, durante quase 80 anos. Diferentes emoções lá sentimos em seus diversos ambientes. No hipódromo em Cidade Jardim, creio que nos seduzia a elegância e as belezas do amplo espaço verde-lúdico, pelo luxo, e pela harmonia de seus domingos ensolarados. Também vibrávamos pelos cavalos garbosos e pelos seus jockeys coloridos. Meu pai divertia-se com suas apostas em “azarões “ e torcia com tal veemência que parecia que um dia teria uma síncope. Foi isso de fato o que um dia ocorreu. E a pule do vencedor, descobri, estava também vibrantemente em seu bolso.
A comida no hipódromo era supimpa e, relativamente, barata. Já na sede da cidade, na Rua Boa Vista, ao luxo conservador do ambiente e do restaurante, somava-se a apetitosa e barata comida, tudo com acesso obtido por estacionamento prático, rápido e barato. Os que trabalhavam na “city“ desfrutavam do seu estacionamento e dos seus espaços elegantes e luxuosos. Era com o prazer de ser rico, o que de fato eu não era, que frequentava esses luxuosos ambientes. Tudo, nos espaços sociais do Jockey, era subsidiado pelo jogo de apostas em cavalos.
Aos poucos, no entanto, foi-se notando que lá não há mais qualquer resquício da velha tradição do bem-viver. O clube de Cidade Jardim já não é mais aquele espaço de elegância, das bonitas mulheres com seus chapéus floridos. E ficaram no passado os monumentais reveillons bocas-livres, que era uma das fórmulas pelas quais a diretoria “socializava“ entre os sócios o lucro da atividade do jogo das massas.
Os nobres restaurantes, quer o da Rua Boa Vista, quer o de Cidade Jardim deixaram com o tempo de ser subsidiados também pelo jogo; foram eles, ao contrário , terceirizados, e no preço de seus cardápios embutia-se o correspondente ao aluguel que não pagavam.
Jamais serão os novos restaurantes o que já foram os antigos. Quanto aos jogadores, resta agora no hipódromo apenas um pequeno número deles. Chamarei a estes turfistas, bem como aos poucos criadores existentes, “núcleo duro”. Quanto aos criadores de cavalos, são eles que pedem cotidianamente uma injeção de álcool canforado, com o qual se iludem e esperam pelo “rateio” da próxima reunião, no domingo seguinte, verificando se há ou não condição do recebimento de seu prêmio, tudo sujeito ao “clima“ do caixa geral.
Estes poucos e abnegados criadores de cavalos, há muito não recebem por suas vitórias o prêmio necessário para o equilíbrio financeiro de seus haras; vivem eles também os últimos dias do esporte das elites. Não perceberam que a “belle-epoque” há muito se passou.
Creio mesmo que seu amor pelos cavalos faz com que banquem, por conta própria, o prejuízo que o esporte agora proporciona; quanto aos jogadores, também já não são muitos, e os remanescentes daquele período de ouro encontram por lá um clima de baixo astral que faz do jogo tudo, menos o local de um esporte lúdico... É uma tristeza ver tão triste quadro. Chamemos a tudo isso que pintei de “Jockeylândia “. Vamos, no entanto, voltar atrás e ver um pouco da história recente do País, a fim de tentarmos compreender o que efetivamente se passa.
Quando o presidente Eurico Gaspar Dutra proibiu o jogo no País, em 1948, proibiu o jogo de azar em qualquer de suas formas, mas deixou apenas a corrida de cavalos como modalidade permitida de jogo.
Dona Santinha, mulher de Dutra, que anteriormente se assinava Ulhôa Cintra, em virtude do seu primeiro casamento, era muito religiosa e supunha que o livre acesso ao jogo bancado seria desastroso às famílias. Veja-se que os cassinos foram rigorosamente fechados no País, e, não obstante todas as tentativas, permanecem não autorizados. Assim, os Jockeys puderam faturar alto com esta modalidade grã-fina de jogo bancado. No nosso caso, o do Jockey de São Paulo, será que o jogo é efetivamente, bancado pelo clube? Ou há uma estrutura imperceptível que dele está se beneficiando? A troca de apostas Rio-São Paulo deixa certa dúvida no ar.
Ainda no passado, fui eu mesmo contemplado por essa estrutura de benesses-com-chapéu-alheio, quando comparecia eu a mais de um reveillon boca-livre no Jockey de São Paulo Cidade Jardim, reveillon bancado, como dito, por essa estrutura: pelo jogo de azar com a fartura oferecida pela ampla utilização do dinheiro das massas.
As massas, no passado, enchiam os hipódromos e lá deixavam “o leite de suas crianças”, e, talvez, muito mais. E era também comum que os jogadores ricos, aqueles que frequentavam as arquibancadas “sociais”, bem como seus amigos, brincarem entre si afirmando ser eles responsáveis, com suas perdas no jogo, pela construção do magnífico vão livre, através do qual se permite visão tão maravilhosa dos potros em carreira. A mesma arquitetura permite ainda um delicioso panorama da cidade e de seus longínquos prédios, através de uma macro visão obtida na arquibancada em recuo privilegiado de centenas de metros, que separam a arquibancada privilegiada do horizonte pós Rio Pinheiros. É, pois, essa visão idílica da cidade e de seus derredores, que tenta ser vendida por agentes exóticos - os sagazes empreendedores imobiliários. É disso que agora falamos. Sente-se um frenesi no ar. Busca-se, ao que dizem, uma saída comercial para o agora inviável Jockey Club. Falou-se, também, há alguns meses atrás, na construção de um shopping no local. Penso que a ideia não pegou. Não li, mas sei que há determinada cláusula na escritura de doação do terreno ao Jockey, confirmando que o imóvel de Cidade Jardim deve destinar-se, permanente e exclusivamente às corridas de cavalo. Caso, um dia, o Jockey acabe com suas corridas, deverá retornar seu enorme terreno à propriedade do estado(?) (sic.)
Penso que chegamos a esse dia: tal espaço é demasiadamente nobre e grande para abrigar a “Jockeylândia” e seria imoral utilizá-lo para um duvidoso empreendimento imobiliário.
Por que então não adaptar esse maravilhoso espaço para a nobre utilização como um hospital público? Está o terreno nas bordas da cidade, e é porta de entrada para a região Oeste. Poucos metros distam o terreno do Jockey do Hospital Albert Einstein, e, ainda próximo, está o Hospital São Luiz-Morumbi.
E o mais importante: está o Jockey a poucos metros da Cidade Universitária, como se estivesse acenando à faculdade de medicina da USP e oferecendo à ela espaços que jamais teve aquela faculdade, desde sua primeira e histórica aula, proferida em 2 de abril de 1913.
Tem o Jockey, no entanto, uma dívida impagável para com as massas. Foram elas que efetivamente construíram este gigante de algum concreto e de notável espaço largo e fértil. E é às massas, pois, que deve ser retornado o imóvel. Devemos nos lembrar que, no mundo, também outros hospitais foram inicialmente construídos para uma atividade diversa, e, em seguida, tiveram o destino de hospital.
Assim, em Paris, o Hospital Salpêtrière fora inicialmente construído para ser uma fábrica de pólvora, (século XVII), e, com o passar dos anos, transformou-se em hospital. Completam-se, agora, três séculos de prestação de notável trabalho médico e social ao povo francês.
E, agora, o mais importante fato: o sonho de Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920) - construir cinco prédios para a Faculdade de Medicina, talvez possa novamente ser sonhado, uma vez que apenas um prédio, desses cinco, foi efetivamente construído.
Deixemos, finalmente, ao Jockey, a seus novos diretores, aos sócios e ao seu “núcleo duro” a exortação abaixo. Cumpre realizarmos.
“A natureza age, o homem faz.”
(Opus postumum)
Kant.
Roberto Ferrari de Ulhôa Cintra é bacharel em Direito pela USP (Universidade de São Paulo). Doutor em Direito pela USP, em 2005; autor da tese “A Pirâmide da Solução dos Conflitos: uma contribuição da Sociedade Civil para a Reforma do Judiciário”. Realizou em 1969 o “Ciclo de Conferências Sobre Segurança Nacional e Desenvolvimento”, promovido pela ADESG Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra. Tem curso de especialização na Harvard University e na New York University. Possui “Curso de Administração de Instituições Financeiras”, pelo IBMEC-Rio e o “Curso de especialização de Mercado de Capitais”, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo - FGV. Estuda e pesquisa o Direito e a Justiça "sustentáveis", a que chama de “Direito Verde” e de “Justiça Verde”, para aplicação no futuro imediato. Sua ótica do Direito tem ênfase na Teoria Geral do Estado; sua ótica da Justiça preocupa-se com a Pacificação, a Conciliação, a Mediação, a Negociação e a Arbitragem. Seu livro “A Pirâmide da Solução dos Conflitos” foi editado pelo Senado Federal (2008) e encontra-se disponível no site www.thinktankpensareagir.com.br.
e-mail: ulhoa@yahoo.com.br
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